Coluna Geremias Pignaton: Bicaldinha e Piaba Preta

Coluna Geremias Pignaton: Bicaldinha e Piaba Preta

Outro dia estava falando das personagens folclóricas que marcam a história de nossas cidades, povoados, bairros e ruas.

Na minha infância, adolescência e juventude, passava verões inteiros na Barra do Sahy, no município de Aracruz.

Conheço pouco a história de Barra do Sahy, mas segundo o saudoso professor José Maria Coutinho, a povoação existe à margem direita do Rio Sahy, em sua foz ou barra, desde tempos imemoriais, como prolongamento litorâneo da aldeia tupiniquim de Pau Brasil.

Comecei a frequentar a praia no início da década de 1970, levado por meu pai, que conhecia a região por sua atividade de madeireiro e caçador amador, nas matas da região de Olho d’Água, próximas ao local.

Naquele princípio da década de 1970, algumas famílias de Ibiraçu começavam a construir casas de veraneio para fugir do calorão inclemente. O clima à beira-mar, por ação do vento, é sempre mais ameno. Entre os ibiraçuenses pioneiros, veranistas em Barra do Sahy, podemos citar: Emílio Lombardi, Hervan Barbariolli, Deolindo Pignaton, Nelson Bragatto, Mauro Sarcinelli, entre outros que posso não estar lembrando. Meu pai também comprou seu lote e construiu uma pequena casa de madeira, como eram a maioria das casas do período.

Cresci passando os verões por lá. Chegava no mês de dezembro e ficava até depois do Carnaval, entretido entre banhos de mar, mergulhos no riozinho Guaxindiba, pescarias, futebol com os amigos nativos e longas caminhadas pelas praias desertas e restingas. As lembranças desse período de minha vida são muito agradáveis. Se felicidade existe, aqueles verões são uma representação dela.

Em Barra do Sahy, conheci dois grandes personagens marcantes: Bicaldinha e Piaba Preta.

Bicaldinha era um descendente de indígenas, suas características físicas demonstravam bem. Vivia de pequenos serviços de diarista, além de pequenas pescarias. Era chamado por todos de Bicaldinha porque pedia aos amilgos uma bicaldinha de cachaça. Não sei qual o motivo de ele sempre acrescentar o L a algumas sílabas das palavras, mas era sua maior identificação.

O mais curioso em Bicaldinha era que ele sempre bebia com a esposa, a quem chamava de Santinha. Se estivesse só, pedia que pagassem duas cachaças, sempre copos cheios, uma delas para levar a Santinha. Diziam que, se ele chegasse bêbado em casa e não tivesse bebida para a esposa, apanhava feio.

O outro personagem era o tal Piaba Preta. Esse provavelmente era um mestiço negro e indígena, porém com características mais puxadas para o africano. Usava óculos quadrados de lentes bem grossas, denotando uma miopia elevada. Tinha sempre um tosco e velho violão pendurado no pescoço, frequentemente faltando uma ou mais cordas.

Piaba Preta não era tão frequente, esporadicamente aparecia no comércio durante a noite, vindo a pé lá da região do cemitério, do lado norte do rio Sahy. Nunca o encontrei sóbrio. Era menos amistoso do que Bicaldinha. Sempre tocava a mesma música no seu violão e cantava a seguinte letra:

Piaba preta, quando vai beber na bica, vai pro mato lá e fica, vai pro mato baleou.

           Eu mesmo vou pro mato, corto pau, faço bodoque, só eu mesmo faço a bala, vai pro mato baleou.

           Maneco Pinto, Chico Bento, Zé Vicente, nunca vi cabra valente, lá no alto jatobôôôôô....

Repetia esses versos à exaustão. Devido à embriaguez, mal se compreendiam as palavras articuladas com dificuldade.

Dentre as maravilhosas lembranças da minha vida em Barra do Sahy, Bicaldinha e Piaba Preta são parte importante.