Coluna Geremias Pignaton: Corpo Humano
A principal entrada do Congresso Nacional, tanto da Câmara quanto do Senado, é a Chapelaria, nome remanescente da época da bengala e da cartola. De terça a quinta-feira, fora do recesso ou de feriadão, é um tumulto de trânsito de automóveis oficiais, para-oficiais e particulares. Tumultuado também é o trânsito de pessoas que por ali adentram à sede do nosso discutidíssimo parlamento. Passam senadores, deputados, ministros, diplomatas, governadores, prefeitos, vereadores, servidores públicos, pessoas comuns da sociedade, inclusive pedintes. Inclusive não! A maioria dos que procuram os senadores e deputados são pedintes, de grandes e nobres requerentes até mal disfarçados mendigos.
Nessa balbúrdia, entre automóveis e transeuntes, na via defronte à Chapelaria, vive um cidadão. Ninguém sabe o nome dele, de onde veio, há quanto tempo chegou. Vive ali recebendo alimentação das sobras das “quentinhas” dos servidores civis e do pessoal da polícia militar. A roupa que veste, sempre de terno e gravata amarrotados, também recebe em doação. Na ausência do nome é chamado e chama todo mundo de Corpo Humano. Com seu cabelo comprido e despenteado, parece um hippie de terno e gravata.
O humor e o comportamento de Corpo Humano variam conforme o dia de trabalho do Congresso. Nos dias de grande discussão – no local se ouve o debate dos deputados pelos autofalantes - ele se transforma num exaltado orador: xinga, fala, discursa, grita não se sabe com quem ou para quem. Entretanto, na maioria dos dias fica calmo, sonolento, cochilando como o magistral prédio.
Nunca molestou ninguém, por isso vive por lá há muitos anos.
Corpo Humano é folclórico, dentro do folclórico Congresso. Dizem que foi rico, teve família, que era ativista político torturado pela ditadura – faltam-lhe alguns dedos. Dizem muita coisa. O certo é que incorporou o espírito da casa. Zanga-se e xinga terríveis palavrões quando algum desavisado ou impertinente o manda trabalhar.
Corpo Humano, conforme muitos, é a pessoa mais lúcida do lugar.
PS -
Escrevi esse texto com minha máquina de escrever portátil Olivetti Lettera82 em 29 de abril de 1995, menos de um mês depois que comecei a trabalhar no Senado Federal. Ainda estava um pouco assustado com todo aquele movimento.
Alguns meses depois, misteriosamente, Corpo Humano sumiu do local. Nunca mais o vi, nem achei ninguém que explicasse o sumiço.