Coluna Geremias Pignaton: Perigo

Coluna Geremias Pignaton: Perigo

O nome não tinha relação com a realidade. De certa forma, ele era bem dócil, não representando muito risco para as pessoas que dele se aproximassem. A menos que chegassem fora de hora na nossa casa, de surpresa, sem chamar de longe. Aí sim, poderiam ganhar dele uma forte mordida ou no mínimo um enfrentamento feroz.

Perigo era um vira-latas médio, um cão negro de aproximadamente 20 quilos. Só não era totalmente preto porque tinha umas manchas avermelhadas no peito e na barriga. Era de média altura, com uma cabeça enorme, ornada por um par de orelhas grandes e caídas. O focinho levemente curvado para cima dava a ele um aspecto simpático e alegre.

Os italianos trouxeram da Itália a cultura de caçadores. Raros eram aqueles que não se arriscavam nessas aventuras pelas matas, atrás de aves, tatus, pacas e caititus. Essa prática foi adaptada e aperfeiçoada nos trópicos pela convivência e companheirismo dos mestiços nativos, que ensinavam os segredos das nossas florestas. A caça, além de diversão e entretenimento, proporcionava a eles proteínas baratas e saborosas. Meu finado pai herdou do vovô essa prática, que muito apreciava.

Dessa forma, nossa casa estava sempre cheia de cães de caça. Perigo era um deles, talvez o melhor que eu já tinha visto. Para as caças das matas, ele era realmente muito perigoso.

Naquele tempo, era muito comum a convivência com a hidrofobia. Cachorros doidos andavam pelas estradas, atacando e assustando pessoas e animais. O medo a esses bichos raivosos afetava muito as pessoas. Nos meses mais frios do ano, sobretudo em agosto, as pessoas evitavam andar pelas estradas sem necessidade. O encontro com esses cães doentes era assustador. Se alguém fosse mordido, estaria condenado à morte, vez que a contaminação seria inevitável e a doença incurável. Tempos em que soros e vacinas não existiam.

Perigo enfrentava cachorros doidos com uma disposição inacreditável. Dificilmente ele não matava o bicho. Por vezes, cães bem maiores que ele. Ao que parece, ele era imune ao vírus. No início tínhamos receio de que ele também ficasse doido, mas a doença mortal jamais o pegou.

Quando papai faleceu, Perigo passou meses tristonho, sem sair de casa. Nem nos acompanhava, como de costume, para o trabalho na roça e para algumas caçadas esporádicas. Depois, meu irmão Pedro, que já era casado e morava cinco quilômetros rio acima, descia aos domingos montado a cavalo para pegar a cachorrada de papai e levar em suas caçadas.

Daí em diante, todo domingo e dia santo, Perigo, ao amanhecer, antes do sol nascer, começava a rodear a casa latindo, reunia toda a cachorrada e partiam correndo para a casa de Pedro, em busca das aventuras das caçadas dominicais.

Todos nós ficávamos bestas com a inteligência do cão. Como ele sabia que era feriado ou domingo? Como ele se orientava no calendário?

Hoje, depois de contar essa história para meu filho mais novo, um rapaz dotado de boa inteligência, chegamos à conclusão de que essa orientação do Perigo se devia aos hábitos da casa. Influíam na percepção do animal a hora de dormir, o fim do trabalho mais cedo no dia anterior, a hora de acordar das pessoas, o cheiro dos alimentos preparados e dos perfumes nos banhos das mulheres. Também o movimento da estrada que passava em frente podia influir na orientação do animal. A rotina do ambiente mudava com o domingo ou com o feriado.

Perigo morreu de velhice, por volta dos 15 anos de idade. Viveu com saúde praticamente até a morte. Sempre foi muito querido por todos de nossa casa.