Coluna Geremias Pignaton: Os Banqueiros Sant’Ana e São Miguel
Nunca entendi o motivo daquela diminuta capelinha ser dedicada a dois santos. Normalmente, este tipo de templo tinha um só padroeiro. Tão insignificante, no meio do pasto, ao lado da estrada, servia de oratório aos passantes que se deslocavam de Taquaraçu, Quixadá e Parque Alegre para o centro da cidade de Ibiraçu. O local, desde a chegada dos italianos, no longínquo ano de 1877, chama-se Sapateiro, no vale do riacho de mesmo nome. A pequena comunidade ao redor da igrejinha rezava ladainhas todo domingo, reunindo as famílias dos descendentes de italianos ali assentados: Peruch, Pignaton, Cao, Pizzinat, Barbariol, entre outros. Nos dias de Sant’Ana e São Miguel, 26 de julho e 30 de setembro respectivamente, sempre havia uma festa maior, com presença de padre e missa, comidas, bebidas, uma quermesse típica dos lugarejos daquele tempo.
A menina, que girava pela idade de 9 anos, ia à igrejinha quase todo dia no final da tarde, entrava sorrateira e permanecia por alguns minutos no interior. Os poucos que viam aquele movimento admiravam a fé precoce daquela criança inocente. Certamente, ela rezava aos santos e se retirava minutos depois, da mesma forma dissimulada que entrara, sem despertar a atenção dos passantes e moradores vizinhos.
Na verdade, aquela esperta menina usava a capela como uma agência bancária. Havia, ao pé da imagem de Sant’Ana, uma pequena cesta, onde os moradores e passantes faziam pequenas ofertas aos santos. Ela entrava, olhava se tinha dinheiro, pedia muito perdão aos padroeiros pelo seu ato irregular, prometia, contrita, devolver o mais rápido possível a pequena quantia que levava e saía em seguida, desconfiada. No dia seguinte, na escola onde estudava, o Grupo Escolar Francisco Santos, na hora do recreio, comprava alguma guloseima com o dinheiro emprestado pelos divinos credores.
E ela pagava? Ou era inscrita como caloteira na lista da Serasa celestial? Na verdade, naquele tempo, entre os camponeses que viviam naqueles sertões, a dificuldade financeira era muito grande. Comia-se aquilo que produziam na pequena propriedade rural, não passavam por dificuldades alimentares básicas. De certa forma, comiam muito bem, mas dinheiro era artigo raro. Para quitar seus empréstimos com os santos, ela fazia incursões nos bolsos da calça do pai, que sempre esquecia ali alguns minguados trocados. Nessas situações, não pegava empréstimos, eram doações involuntárias a fundo perdido. Assim pagava aos santos. Muito boa pagadora, jamais contraía novos débitos sem que quitasse o anterior.
Certa ocasião, passou semanas sem restituir o dinheiro e, consequentemente, sem as guloseimas escolares. Suas incursões aos bolsos paternos foram infrutíferas. Ficou com a consciência tão pesada que levou milho no bolso da saia para o interior da capelinha. Ajoelhou-se sobre os grãos e ficou por longo tempo pedindo perdão aos santos pela inadimplência. Saiu com os joelhos doloridos, inchados, quase esfolados, mas na fé de que sua dívida fora perdoada pelos dois magnânimos credores.
Envergonhada, nunca mais voltou ao banco para pedir novo empréstimo.
Na foto: o convite para a festa de Sant’Ana deste ano, uma tradição quase secular.